Ficou virando a taça de espumante
entre as mãos. Tinham acabado de cear. Na tela de TV, Roberto Carlos fechava os
olhos na profunda emoção de todos os réveillons. Mas não havia som, a tecla do
controle remoto no mudo. Era só uma imagem familiar de algo que mudava para
nunca mudar. No fundo ninguém queria que mudasse nada, só desejava ter forças
para encenar por mais um ano uma vida que de tão encenada havia se tornado
verdade. Era o que a cena parecia dizer. O tilintar dos copos, o som metálico
dos talheres, as vozes num tom na direção da euforia obrigatória vão marcando
cada momento de um dia morto.
Tirou os olhos do líquido dourado
quando sentiu suas pálpebras umedecerem-se de ternura por aquele desespero
singelo que os mantinha ali, simulando uma felicidade que sabiam frágil. Todos
ali com expressão de alegria vazia, eles sabem que estão condenados às datas
encadeadas na tentativa de repetir os rituais para escapar dessa morte em vida.
Também ele começara a morrer à luz do dia. Não eram mais apenas as suas
células, os seus neurônios. Era o início daquela expressão que via agora nos
olhos de todos, o princípio da rigidez. A vida se indo, sem alarde. Sabia que
não era pelo ano que começava que estavam ali, mas para tentar se enganar que a
vida não terminava.
Às vezes achava que todos quase não
se mexiam mais por medo que o movimento os denunciassem à moira que tecia o fio
de suas vidas. Se ficassem bem quietos, quem sabe a morte não o notassem e eles
estariam ali no próximo réveillon, cabeceando no prato de lentilhas. Como será,
ele pensou, ter a consciência de que há uma probabilidade grande de não estar
mais ali no ano que vem? Pensamento estranho,
ele devia estar mais esgotado do que pensava.
Então veio o som. Ele chegou como dor.
Demorou a compreender o que era aquilo. As palavras chegaram como hieróglifos
antigos, de uma língua desconhecida.
“Bota na bundinha, bem no meio da
bundinha.”
Finalmente compreendeu. Ele não
queria, mas entendia aquela língua. Era a língua dele também. Abriu a porta da
casa e espiou. Lá estavam eles. Os vizinhos. Caipiras da cidade. O capô do
carro erguido e aquelas caixas de som enormes ecoando um funk em que os homens
enfiavam coisas nas mulheres. E as mulheres tinham coisas enfiadas nelas. E
todo o bairro precisava ouvir que eles tinham um carro potente com um som
potente em que alguém berrava que era potente ao enfiar seu pinto em orifícios que sempre foram usados para este fim sem que ninguém
tivesse que alardear coisa alguma. Tão óbvio. E agora a impotência era
tanta que era preciso berrar. O imperativo da autoafirmação.
Eles gritavam com suas barrigas
balançando, e as mulheres com suas barrigas que também balançavam gritavam, bundas
para cima e para baixo, peitos sacudindo como sacos de carne, flácidos. E as
crianças deles riam um riso nervoso, e pareciam todos acreditar que estavam
muito felizes gritando e ouvindo coisas sendo metidas e enfiadas.
Acabara a paciência. Caminhou
lentamente como um sonâmbulo até a cerca que dividia o terreno entre as duas
casas. Atrás dele, sua família o seguia com os olhos brilhantes. Por favor, ele
disse, daria para baixar o volume? Os homens que balançavam sua barriga e as
mulheres que balançavam a bunda riram. É réveillon, estamos comemorando,
disseram. Você não tem alegria, cara, não sabe se divertir?
E as crianças que riam, excitadas,
riram mais. Ele voltou como um sonâmbulo humilhado. Quando tirou os olhos de
fora para voltá-los para dentro soube que estava tudo mudado. A sua família
acordara, tinham medo e o encaravam numa expectativa assustada.
Ele nunca soube o que realmente
aconteceu. Quando se deu conta todos haviam despertado de uma morte em vida. Sua
mulher esboçava aquela risadinha nervosa que era seu cacoete quando não sabia o
que fazer. Seus irmãos e irmãs, os cunhados, a sogra tinham olhos que vagavam
pelo quadrilátero da sala. Nenhum deles sabia como lidar com a violência que
rompera a camada de gelo fino que cobria o equilíbrio de suas vidas.
Ficou a olhar pela janela os vizinhos
funkeiros. E daquele ângulo as barrigas dos homens e das mulheres balançavam
ainda mais.
Aquele seria um ano bom.