sábado, 21 de março de 2015

Devir

Ficou virando a taça de espumante entre as mãos. Tinham acabado de cear. Na tela de TV, Roberto Carlos fechava os olhos na profunda emoção de todos os réveillons. Mas não havia som, a tecla do controle remoto no mudo. Era só uma imagem familiar de algo que mudava para nunca mudar. No fundo ninguém queria que mudasse nada, só desejava ter forças para encenar por mais um ano uma vida que de tão encenada havia se tornado verdade. Era o que a cena parecia dizer. O tilintar dos copos, o som metálico dos talheres, as vozes num tom na direção da euforia obrigatória vão marcando cada momento de um dia morto.
Tirou os olhos do líquido dourado quando sentiu suas pálpebras umedecerem-se de ternura por aquele desespero singelo que os mantinha ali, simulando uma felicidade que sabiam frágil. Todos ali com expressão de alegria vazia, eles sabem que estão condenados às datas encadeadas na tentativa de repetir os rituais para escapar dessa morte em vida. Também ele começara a morrer à luz do dia. Não eram mais apenas as suas células, os seus neurônios. Era o início daquela expressão que via agora nos olhos de todos, o princípio da rigidez. A vida se indo, sem alarde. Sabia que não era pelo ano que começava que estavam ali, mas para tentar se enganar que a vida não terminava.
Às vezes achava que todos quase não se mexiam mais por medo que o movimento os denunciassem à moira que tecia o fio de suas vidas. Se ficassem bem quietos, quem sabe a morte não o notassem e eles estariam ali no próximo réveillon, cabeceando no prato de lentilhas. Como será, ele pensou, ter a consciência de que há uma probabilidade grande de não estar mais ali no ano que vem? Pensamento estranho, ele devia estar mais esgotado do que pensava. 
Então veio o som. Ele chegou como dor. Demorou a compreender o que era aquilo. As palavras chegaram como hieróglifos antigos, de uma língua desconhecida.
“Bota na bundinha, bem no meio da bundinha.”
Finalmente compreendeu. Ele não queria, mas entendia aquela língua. Era a língua dele também. Abriu a porta da casa e espiou. Lá estavam eles. Os vizinhos. Caipiras da cidade. O capô do carro erguido e aquelas caixas de som enormes ecoando um funk em que os homens enfiavam coisas nas mulheres. E as mulheres tinham coisas enfiadas nelas. E todo o bairro precisava ouvir que eles tinham um carro potente com um som potente em que alguém berrava que era potente ao enfiar seu pinto em orifícios que sempre foram usados para este fim sem que ninguém tivesse que alardear coisa alguma. Tão óbvio. E agora a impotência era tanta que era preciso berrar. O imperativo da autoafirmação.
Eles gritavam com suas barrigas balançando, e as mulheres com suas barrigas que também balançavam gritavam, bundas para cima e para baixo, peitos sacudindo como sacos de carne, flácidos. E as crianças deles riam um riso nervoso, e pareciam todos acreditar que estavam muito felizes gritando e ouvindo coisas sendo metidas e enfiadas.
Acabara a paciência. Caminhou lentamente como um sonâmbulo até a cerca que dividia o terreno entre as duas casas. Atrás dele, sua família o seguia com os olhos brilhantes. Por favor, ele disse, daria para baixar o volume? Os homens que balançavam sua barriga e as mulheres que balançavam a bunda riram. É réveillon, estamos comemorando, disseram. Você não tem alegria, cara, não sabe se divertir?
E as crianças que riam, excitadas, riram mais. Ele voltou como um sonâmbulo humilhado. Quando tirou os olhos de fora para voltá-los para dentro soube que estava tudo mudado. A sua família acordara, tinham medo e o encaravam numa expectativa assustada.
Ele nunca soube o que realmente aconteceu. Quando se deu conta todos haviam despertado de uma morte em vida. Sua mulher esboçava aquela risadinha nervosa que era seu cacoete quando não sabia o que fazer. Seus irmãos e irmãs, os cunhados, a sogra tinham olhos que vagavam pelo quadrilátero da sala. Nenhum deles sabia como lidar com a violência que rompera a camada de gelo fino que cobria o equilíbrio de suas vidas.
Ficou a olhar pela janela os vizinhos funkeiros. E daquele ângulo as barrigas dos homens e das mulheres balançavam ainda mais.
Aquele seria um ano bom.